Se a Justiça não tornar o petista inelegível, vai ser difícil para seus adversários — muitos inexperientes em termos políticos e administrativos — derrotá-lo
Lula da Silva depondo mais para os eleitores brasileiros do que para o juiz Sergio Moro, em Curitiba. O que parece uma vitória política (talvez seja) pode levar a uma derrota processual, pois sua versão não é convincente | Foto: Reprodução
Há coincidências entre o presidente Getúlio Vargas — que governou o Brasil de 1930 a 1945, na primeira gestão, e de 1951 a 1954, na administração democrática — e o ex-presidente Lula da Silva. A mais curiosa delas: para não ser derrubado, depois de ter gerido o país como ditador de 1937 a 1945, Vargas renunciou em 29 de outubro de 1945; se não o fizesse, seria deposto pelos militares. O petista-chefe nasceu dois dias antes, em 27 de outubro de 1945, há 71 anos.
Costuma-se atribuir, com certa razão, a queda de Vargas aos ventos democráticos originários da Europa, cada vez mais fortes depois da derrota de Benito Mussolini, na Itália, e Adolf Hitler, na Alemanha. De fato, Vargas era ditador, mas, paradoxalmente, seu governo enviou 25 mil soldados para lutar contra o nazismo na terra de Dante Alighieri e Giacomo Leopardi. Os governos da Inglaterra, de Winston Churchill, e dos Estados Unidos, de Franklin D. Roosevelt, não ficaram minimamente constrangidos com o apoio dos ditadores Vargas, do Brasil, e Stálin, da União Soviética.
No Brasil, generais como Góes Monteiro e Eurico Gaspar Dutra, acompanharam Vargas durante toda a ditadura. No período da Segunda Guerra Mundial, não questionaram a ditadura do Estado Novo. Porém, como havia um descompasso entre o presidente e a sociedade — e precisava-se de um bode expiatório, o “único” culpado pela virulenta ditadura —, os militares optaram por descartá-lo. Não porque fosse um ditador, como costuma se sugerir, e sim porque não era mais útil, não tinha legitimidade para continuar governando. A rigor, não tinha apoio, nem dos militares que, apesar de tê-lo sustentado nos anos cruentos, não precisavam mais dele.
Derrubado Vargas, Eurico Dutra, o general que havia participado de seu governo e tinha uma queda pela dupla Mussolini & Hitler, é eleito presidente. Com apoio de quem? De Vargas, que preferia vê-lo no poder a abrir espaço para o brigadeiro Eduardo Gomes, da UDN.
Apesar de eleito para o Parlamento, Vargas parecia acabado. A democracia “prescindia” do ditador. Pois, na sucessão de Dutra, os eleitores, quiçá avaliando que havia sido injustiçado, colocaram o retrato do Velho na parede e deram-lhe um mandato democrático, em 1950. Vargas tinha 68 anos. Governou até 1954, quando se matou com um tiro no coração, sob intensa pressão da oposição, tanto civil quanto militar. Ele tinha 72 anos. Parecia ter mais. Os opositores, como Carlos Lacerda e Juarez Távora, diziam que o Palácio do Catete havia se tornado um mar de lama. Havia lama no governo de Vargas. Curiosamente, o petebista não era corrupto, mas a amoralidade de um governo deve ser debitada, em larga medida, àquele que está na Presidência. Todo presidente é muito bem informado sobre o que ocorre, inclusive nos bastidores, no seu governo. Se não é bem informado, é por que não presta atenção às informações que recebe diariamente. É possível que Vargas fizesse vista grossa à corrupção de alguns de seus aliados, como Gregório Fortunato. É provável que confundisse corrupção com mero “tráfico de influência”. Frise-se que o líder do PTB não era nenhum néscio político. Era uma raposa das mais profissionais. Era mais esperto do que Tancredo Neves e Ulysses Guimarães juntos.
Ganhar tempo
Presidentes da República sabem mais a respeito do ocorre no governo do que em sua própria residência. Portanto, não dá para aceitar a posição de Lula da Silva de que não sabia o que estava acontecendo no seu governo. O petrolão, gigante incontrolável e pantagruélico, podia até não ser visível para a imprensa, mas certamente o era para os ex-presidentes Lula da Silva e Dilma Rousseff. O mais provável é que, por tirarem proveito político — e, quem sabe, até financeiro, direta ou indiretamente (nas campanhas, por exemplo) —, “decidiram” não controlar o “monstro” da corrupção. Há indícios, cada vez mais fortes, de que, pelo contrário, houve um incentivo maciço aos “malfeitos”. Integrantes do PT, do PMDB e do PP chafurdaram-se na lama da Petrobrás. O PSDB não escapou e vários de seus membros receberam dinheiro nada limpo da Odebrecht e da OAS, para mencionar apenas dois gigantes do setor de empreiteiras.
A revista “Época”, numa reportagem exaustiva e aparentemente desapaixonada, calcula que Lula da Silva recebeu pelo menos 80 milhões de reais dos esquemas pouco católicos das empreiteiras do Clube do Bilhão, notadamente da Odebrecht, esta, em tese, a reinventora da corrupção sistêmica. Parece que, apesar de sua defesa contundente na audiência a Sergio Moro — o juiz prova que sabe como poucos o que é respeitar as instituições, tanto que não cedeu nem se intimidou com o populismo ardiloso de Lula da Silva —, há um consenso de que o ex-presidente permitiu que seu governo (e o de Dilma Rousseff, sobre o qual tinha influência) se tornasse artífice das bandalheiras investigadas pela Operação Lava Jato.
Lula da Silva pode não ser o mais corrupto (ainda que seja apontado como o poderoso chefão do esquema mafioso, a chefia parece ter sido da família Odebrecht, associada a outros grupos). Mas é certo que, sem sua anuência (e de Dilma Rousseff), o esquema teria sido brecado. Tudo indica que o pacto faustiano dos “socialistas” do PT (e seus aliados oportunistas-governistas) com os “capitalistas” das empreiteiras desandou devido ao excesso de pedidos (exigências) dos primeiros. Mas o que vai se discutir, adiante, tem menos a ver se o ex-presidente chafurdou ou não na lama do Palácio do Planalto.
Do ponto de vista do público em geral, não partidarizado e ideologizado, Lula não se saiu tão mal no Paraná. Parecia evidente que não estava prestando depoimento ao juiz Sergio Moro, e sim falando para o país, ou parte dele. Talvez tenha inaugurado o comício feito diretamente de uma sala do Poder Judiciário. Agora, do ponto de vista processual, ao apresentar explicações ambivalentes — chegando a responsabilizar uma pessoa que morreu, Marisa Letícia, com quem era casado, pelas negociações do apartamento do Guarujá —, e não uma defesa consistente, Lula saiu-se mal. Havia, fora do palanque político, outra saída? Não. Se houvesse, os advogados o teriam convencido a adotá-la. Aliás, havia um caminho: confessar o suposto crime (ter recebido o apartamento como propina) — o que levaria a uma condenação imediata. O que Lula da Silva e seus advogados — que são de primeira linha (e é um direito do ex-presidente tê-los como apoio) — querem é procrastinar, ganhar tempo. Mas uma delação de Antonio Palocci e João Vaccari Neto, confirmando o comando do petista-chefe, pode desmontar, de vez, sua defesa, e não apenas, e talvez não exatamente, a respeito do tríplex da praia.
Lula ganha
O que se pretende debater brevemente, a seguir, é outra coisa: se puder ser candidato a presidente, se a Justiça não torná-lo inelegível, Lula da Silva tem mesmo condições de retornar à Presidência da República, como Getúlio Vargas voltou, em 1950? Tem.
Um deles é que a safra política atual, pós-derrocada de líderes como Aécio Neves, José Serra e, quem sabe, Geraldo Alckmin, não é das melhores. Marina Silva (gente “boa”, mas sem pulso), Ciro Gomes (explosivo e desagregador), Jair Bolsonaro (espécie de Marine Le Pen sem o verniz francês), João Doria (está bem em São Paulo, mas é uma incógnita) e Joaquim Barbosa (ético, mas sem experiência política e administrativa) têm certo apelo popular, mas teriam condições de montar uma base política, incluindo a base parlamentar, para governar o país, ou, no poder, se tornariam novos Fernando Collor e Dilma Rousseff? João Doria teria o PSDB a alavancá-lo, mas não tem experiência suficiente para lidar com as raposas do Congresso (a Lavo Jato vai torná-las ainda mais espertas e hábeis).
Não basta ser honesto para dirigir um país. É preciso ter o mínimo de competência técnica, até para montar uma equipe eficiente, e de habilidade para articular com forças políticas visceralmente discrepantes. Descontado o problema ético, que pode até impedi-lo de ser candidato, Lula da Silva é o postulante que reúne as maiores condições de, se eleito, governar o país (e, ao contrário de Dilma Rousseff, é agregador). Pode não se gostar disso, mas é um fato.
Mesmo que não fiquei inelegível, Lula da Silva pode não disputar a eleição de 2018? Muito difícil não disputar, pois aparece em primeiro lugar nas pesquisas — sustentado, sobretudo, pelos investimentos sociais que fez quando presidente e sua conexão pessoal com o povão, que, aliás, parece achá-lo mais esperto do que corrupto, uma espécie de João Grilo, a personagem da peça “O Auto da Compadecida”, do paraibano Ariano Suassuna. Mas, se não for candidato — considerando até o imponderável —, por que afirma que será candidato? Para tencionar (talvez mais do que ameaçar) os integrantes de instituições como Poder Judiciário, Ministério Público Federal e Polícia Federal.
Sublinhe-se que, sem Lula disputando a Presidência da República, é muito provável que, aproximando da Nanicolândia, o PT banque o vice de Ciro Gomes. Daria a este o que o PDT não pode fornecer-lhe: bases em todo o país, especialmente bases populares e conexões profundas com os setores mais pobres da sociedade. Pode ser que não, mas Lula da Silva pode ser até mais forte como cabo eleitoral do que como candidato a presidente.
Se Lula for eleito presidente, em 2018, como fica o Brasil: mudará o nome para República Cínica do Brasil? Não se sabe, pois o futuro, como sabem crentes e ímpios, nem a Deus pertence. Mas que o petista tem chance de ser eleito, dada sua conexão com os pobres, isto tem, e como…
Do Jornal Opção
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