As utopias podem ser conservadoras e piorar as sociedades. A União Soviética, sob Stálin, apostou na construção de uma nação perfeita, mas o comunismo acabou matando 30 milhões de pessoas
As utopias são progressistas ou conservadoras? O filósofo anglo-letão Isaiah Berlin, no livro “Limites da Utopia”, sugere que são “conservadoras” e não levam, necessariamente, a um presente e a um futuro que deverá ser radioso. O sacrifício do presente, em prol de um futuro que será um esplendor, resulta quase sempre num porvir de mais sacrifícios.
Na tradição ocidental, pensa-se na utopia como um “lugar” que, em tese, será muito “melhor” do que o que existe. A ficção supera a realidade e pode, teoricamente, se tornar realidade. O indivíduo, sabendo-se imperfeito, imagina a sociedade perfeita, donde, por certo, será possível construir indivíduos perfeitos.
No Brasil, na Colônia Cecília, de matiz anarquista, acreditava-se que, por fim, havia se constituído a sociedade perfeita, com todos iguais, nas suas diferenças, e sem Estado. Pois eis que o indivíduo, o ser imperfeito, reaparece. Um dos líderes anarquistas “roubou” o dinheiro da comunidade e escafedeu-se.
Foto: Jarvic 8: Pursuing the Development of the Artificial Soul/Chris Mars |
O filósofo alemão Karl Marx, seguido pelo panfletário russo Vladimir Lênin, imaginou a sociedade perfeita a partir da demolição do capitalismo. O capitalismo ruiria por suas próprias falhas, dado o choque-desequilíbrio entre as forças produtivas e as relações de produção — com o empurrãozinho do proletariado, uma força revolucionária. No lugar do capitalismo, um modo de produção que Marx criticava mas via como espantosamente inovador, se instalaria o socialismo e, adiante, o comunismo, a sociedade dos iguais.
Costuma-se sublinhar que, apesar do “Manifesto Comunista”, Marx não desenvolveu a parte política de sua crítica — que alguns percebem como “ataque”, e não como uma interpretação precisa ou científica — ao capitalismo, de como se daria a substituição de um modo de produção pelo outro. O filósofo britânico John Gray percebe a ideia de modos de produção delineada pelo marxismo como derivada do positivismo de Auguste Comte, dada sua linearidade: comunitário, escravista, feudal, capitalista, socialista e comunista. O ritmo da história da humanidade seria assim — sem interrupções. A vitória do capitalismo sobre o comunismo soviético indica a falha da exposição linear. É possível verificar outra questão: a ideia da “retomada”, se se pode dizer assim, de aspectos do modo de produção comunitário, como a igualdade plena entre os homens — agora, sem escassez, dado o sucesso da indústria e do agronegócio —, pode ser derivada de certo “cristianismo” do marxismo. O comunismo é, de certo modo, o equivalente ao paraíso.
Se Marx percebeu os problemas do capitalismo, que examinou no cartapácio “O Capital”, e expôs a possibilidade de sua superação, no “Manifesto Comunista”, Lênin, depois de estudar suas ideias a fundo — tratava-se de um intelectual de vasta cultura filosófica e, até, literária —, percebeu que o proletariado poderia questionar e confrontar os capitalistas, mas, largados sozinhos, não seriam capazes de criar uma maneira de destruí-los e criar um “mundo novo”.
Por isso, Lênin, leitor do grande Herzen e de Plekhanov, contornou certo idealismo de Marx — marxistas, marxianos ou marxicidas certamente detestarão a conexão entre idealismo e Marx, pois idealista seria Hegel, que, importantíssimo, é pouco lido no Brasil, exceto pelo viés daquele que o “virou” de cabeça para baixo — e introduziu ou reforçou a ideia de que o Partido Comunista seria o “instrumento” eficaz para organizar o proletariado com o objetivo de “derrotar” o capitalismo e “implantar” o socialismo. Não era preciso esperar o “esgotamento” do crescimento e do desenvolvimento do capitalismo. O partido, com o uso da violência, a parteira da história, seria o empurrãozinho necessário para o proletariado avançar e construir a sociedade nova, a, digamos, utopia socialista, o pontapé inicial para a “sociedade dos iguais”, o comunismo.
Extremamente capaz como político, além de inteligente e perspicaz, Lênin entendeu que, ao substituir o czarismo, as forças democráticas de Alexander Kerensky eram frágeis — e eram frágeis, paradoxalmente, porque democráticas — e poderiam ser derrotadas. Num primeiro momento, chegou a articular sua fuga, mas, fundindo intuição e pragmatismo, sentiu o “cheiro” de fraqueza no ar e, com os vários grupos socialistas, não apenas com o Partido Bolchevique, “tomou” o poder. Suas ideias, como vencedoras, estavam “certas”. A utopia socialista-comunista finalmente poderia ser realizada.
Não resta a menor dúvida de que a maioria dos socialistas acreditava que, tomando o poder aos capitalistas, seria possível construir a sociedade dos iguais. A ideia, em si, é bela. Até 1917, a desigualdade havia movido o mundo; agora seria a vez da igualdade. Mas a utopia naufragou. Por quê?
Porque, tudo indica, não é possível construir uma sociedade de iguais, uma sociedade perfeita, com indivíduos perfeitos. É a desigualdade, e não a igualdade, que continua empurrando o homem adiante, com recuos aqui e ali, buscando melhorar a sociedade, tornando-a melhor, porém jamais perfeita.
Na década de 1920, especialmente a partir de 1924, quando Ióssif Stálin chegou ao poder na União Soviética, com a morte de Lênin, milhões de socialistas se empolgaram com a Revolução Russa de 1917 (mais apropriado, seria chamá-la de Revolução Soviética). A tese, um mundo melhor para todos, era benfazeja. Tais milhões, muitos deles inocentes, não sabiam que o leninismo (o stalinismo engatilhado), ao parir o stalinismo (o leninismo atirando), era o ovo da serpente.
Para fazer a reforma agrária e desenvolver a indústria, Stálin poderia ter esperado um pouco mais, convencendo as pessoas da necessidade imperativa do avanço. Mas, como o comunismo não é democrático, o czar vermelho decidiu criar um Estado policial e executava todos aqueles que discordavam de suas ideias. As estatísticas variam, mas os dados sugerem que, sob Stálin, o comunismo matou entre 25 milhões e 30 milhões de indivíduos. Para construir o paraíso na terra, uma ideia sempre empurrada para “mais tarde” — no futuro —, era “preciso” matar aqueles que discordavam dos métodos dos comunistas. Quer dizer: para edificar um futuro grandioso era preciso tornar o presente um inferno. Descobriu-se que os meios corromperam os fins, que se tornaram dramáticos. O comunismo tornou-se uma longa noite de 74 anos para os soviéticos. Mas, do ponto de vista da história, a hegemonia esquerdista, no Leste Europeu, é uma gota d’água no oceano.
O comunismo na China de Mao Tsé-tung, discípulo de Stálin, matou cerca de 70 milhões de indivíduos. Trata-se de mais uma utopia que naufragou. Os comunistas continuam no poder, desde 1949, porque perceberam, ao contrário dos soviéticos — Mikhail Gorbachev até entendeu que o comunismo havia fracassado, mas não tinha mais como adaptá-lo para um capitalismo de Estado —, que, se queriam manter as ideias da esquerda em termos políticos, para permanecer no poder, era preciso adotar medidas capitalistas, de caráter modernizante, na economia. Portanto, o que faz o comunismo manter-se vivo na China são os métodos capitalistas de crescimento e desenvolvimento.
A ideia da construção da sociedade e do homem perfeitos naufragou. Mas permanece como uma utopia. Uma ideia mais próxima da realidade é a edificação de uma sociedade menos imperfeita, na qual todos possam se alimentar, estudar e ter direito aos bens de consumo. Ela funciona bem? Não. Nada nunca funcionou bem na história da humanidade. A maioria dos problemas — como o consumo de drogas (que sempre vai existir) — não tem solução total, exceto parcial.
Lava Jato
O Brasil, país de origem edênica — a história dos índios “descobertos” por Pedro Álvares Cabral (a rigor, nem deveriam ser chamados de índios, mas por seus nomes e de suas “tribos”) —, passa por um momento crucial. Fica-se com a impressão de que os brasileiros acreditam na construção da sociedade perfeita, na purificação dos homens.
Dada a Operação Lava Jato, os brasileiros, tão céticos quanto os franceses — talvez menos cínicos —, voltaram a acreditar, aparentemente, que é possível constituir um país melhor. E estão certos. A Lava Jato, embora não resolva todos os problemas do país, sugere que é possível articular uma nação sem ou com menos impunidade, onde todos, ao menos ao olhar da Lei, são iguais. A produção de homens institucionais, que acatem o primado da lei — sejam ricos, pobre ou de classe média —, não é uma conquista utópica, do mundo da fantasia. É uma conquista real, de uma sociedade modernizada.
Entretanto, se os brasileiros acreditarem que todos os seus problemas serão resolvidos e que a Lava Jato se tornou a panaceia que todos queriam, aí a decepção se transformará uma grande depressão coletiva. A operação, que investiga e penaliza corruptos, políticos e empresários, é salutar, até fundamental. Mas, dela, não se deve esperar que leve à sociedade perfeita.
Por Euler de França Belém
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