O ex-publicitário escreve um romance, que, discutindo questões políticas, da esquerda, contém informações que parecem ter sido escritas hoje
Muitas vezes a ficção, e mesmo a poesia, e até desenhos e pinturas são proféticos, capturam lampejos, traços, imagens e atmosfera de acontecimentos futuros; antecipam e anunciam grandes desastres e tragédias.
Casos mais conhecidos são dois romances de Aldous Huxley — “Admirável Mundo Novo” e “A Ilha” —, o romance “A Peste”, de Albert Camus; ou ao novela “Revolução dos Bichos”, de George Orwell. Este mais uma crítica do totalitarismo social aplicado pelo stalinismo aos sistemas produtivos e aos modos de funcionamento das sociedades humanas, em ditaduras totalitárias.
Hugo Brockes, escritor goiano | Fernando Leite/Jornal Opção
Na poesia, sem puxar muito pela memória, é possível localizar lampejos de tais visões proféticas, em poemas de Carlos Drummond de Andrade. Em um deles, o poeta itabirano fala de um medo geral, tomando conta das vidas, e as corroendo por dentro, como bolha assassina ou tsunami devastador, corroendo a sanidade mental, e tirando a paz das sociedades de países de todo o globo terrestre.
Assinala o bardo de Itabira: “Provisoriamente, não cantaremos o amor/que refugiou-se/mais abaixo dos subterrâneos/ cantaremos o medo/que esteriliza os abraços/não cantaremos o ódio,/porque este não existe/existe apenas o medo/nosso pai e companheiro/o medo grande dos sertões/dos mares, e dos desertos/o medo dos soldados/o medo das mães/o medo das igrejas./Cantaremos o medo dos ditadores/o medo dos democratas/cantaremos o medo da morte/e o medo depois da morte/depois morreremos de medo/e sobre nossos túmulos nascerão/flores amarelas e medrosas/.”
Recentemente, o escritor Hugo Brockes — goiano de Pirenópolis, ex-publicitário de sucesso (com premiações nacionais), ex-militante de movimento de esquerda, nos anos anteriores ao movimento cívico-militar de 1964 — publicou um romance, “Hipertemia”, que tive o prazer de prefaciar. O livro fala de uma devastação de vidas, em escala mundial, tendo como agente um vírus causador de febre altíssima e devastadora, que, em poucos dias, aniquila praticamente toda a humanidade, apenas sobrevivendo um mínimo contingente da população humana que tem constituição orgânica refratária à peste letal.
Qualquer semelhança e aumento da quantidade de horror, que chegou aos humanos, com a proliferação do temido novo coronavírus, atribui-se à liberdade de imaginar, devanear e projetar, que tem e deve ter todo escritor ou poeta.
No texto de apresentação comento: “A descrição da atmosfera reinante, nas cidades e nos campos, da devastação da vida humana, em escala global, é forte o suficiente para prender a atenção de quem lê este romance”.
Talvez nem mesmo o autor imaginasse que, decorrido pouco mais de um ano do lançamento de seu livro (que despertou pouca atenção da “intelligentsia”, cada um estando preso ao sistema umbigóide de sua própria vaidade ou de sentimento de auto-importância), a peste do coronavírus viria, não mais na ficção, e sim no corpo vivo da terrível realidade, o cenário de medo coletivo, e de morticínio em grande escala. Sabida que é a indiferença ou o menoscabo com que, em nossa província asfaltada, são tratados todos os autores e obras que não fazem parte de uma certa patota empoderada e triunfante, desde quase sempre.
Em texto de apresentação do romance, o professor e articulista Marcantônio Dela Côrte assinala: “Este livro nasce do real, do concreto, do absolutamente comprovado e expõe as mazelas da nossa civilização. Mas esta é uma ficção quase profética, que demonstra como seria possível qualquer mudança”.
Backer, que talvez seja Hugo Brockes, conduz a narrativa, pela qual fica o leitor sabendo (se é que já não sabia antes), pelos autos da história recente, da implantação de centenas de focos guerrilheiros em rincões recuados do Brasil profundo, nos anos anteriores à Revolução de 196. Tal movimento esquerdista foi financiado pela ditadura cubana, de Fidel Castro, conforme farta documentação a respeito, constando inclusive de livros publicados.
Vemos, no romance “Hipertemia”, um grupo de refratários da destruição em massa (e quase total) da população humana, deslocando-se para uma certa Serra da Saudade, onde se dedicariam à instalação de um foco guerrilheiro conhecido como Ligas Camponesas, comandado, a partir de Recife, pelo comunista Francisco Julião.
Agruras quixotescas e mirabolantes, vividas por este grupo de refratários sobreviventes, tornados guerrilheiros da sobrevivência, após o desastre da Hipotermia, que exterminou quase toda a humanidade existente no planeta Terra, que, por justiça e por verdade, deveria ser chamado de planeta Água.
O autor, já no segundo capítulo, revela não só o seu desespero, como sobrevivente raro, do terrível desastre, mas também nos fala de seu ideário filosófico, e também ideológico — no romance descrito como sendo de tendência anarquista, mas sendo fundas raízes de marxismo revolucionário. Sua visão de mundo vai descrita na fala inicial de Backer, narrador-personagem: “Eu não vim aqui para me matar. Existem outras infinitas formas de suicídio, outras formas rápidas e indolores. Eu apenas queria, e quero mais do que nunca, manter-me o mais afastado possível daquele mundo insensato. Jamais passou por minha cabeça a ideia de suicídio. Eu quis colocar à prova o meu estoicismo e a minha resistência, diante do isolamento, da solidão, do tédio e da angústia. Penso que chegou a hora de rever essa decisão, talvez mudar de maneira radical o meu modo de viver aqui”.
Trata-se de uma fala delirante, resultante de estresse pós-trauma, um monólogo obsessivo, que permeia toda a narrativa, tal como vemos no enlouquecido coronel Kurtz, do romance “O Coração das Trevas”, do escritor anglo-polonês Joseph Conrad.
Em certo momento de seu delírio, Backer deixa entrever que se desiludiu da utopia comunista, passando a abraçar o ideário anarquista: “Chegou a hora de retornar, em pensamento, ao mundo insensato. Neste isolamento, talvez eu tenha uma visão crítica mais isenta, mais profunda, longe do ardor passional dos embates políticos e vivenciais. (…) Eu era um ingênuo, quando me entusiasmei com a ideia da ditadura do proletariado. Ditadura é ditadura, seja qual for a sua natureza. Só quem já viveu sob a chibata duma ditadura sabe o que é isto Bakunin estava certo, e foi profético, quando reconheceu que a prometida ditadura do proletariado seria, na verdade, uma ditadura dos intelectuais. (…) Maomé, para ouvir as arengas da sua esquizofrenia, refugiou-se na caverna do monte Hira; eu, para ouvir a voz da minha consciência e do meu intelecto, refugiei-me nesta caverna”.
O delírio do presumido poder advindo de imaginário estoicismo logo vai embora, tão logo o personagem, e os poucos que estão sob seu comando, deparam-se com os dados da realidade.
Já agora narrando em terceira pessoa, o autor de “Hipertemia” escreve: “Backer tenta sair da letargia que o sufoca, mas sente que o antigo vigor e porte atlético já o abandonaram. O desânimo, a fraqueza e a profunda sonolência tomaram conta de seu corpo enfermo. Ele então percebe que está chegando ao fim, e que é preciso juntar o pouco de energia que ainda lhe resta para encontrar uma saída para a vida, ou para se entregar estoicamente à morte”.
Um dos aspectos igualmente interessantes da obra está no modo como o autor aproveita a narrativa do horror apocalíptico pós-destruição da humanidade inteira — e também da tentativa de organizar uma sociedade com base em outra visão de mundo, por parte do grupo de refratários sobreviventes. Estes, em acampamento que chamam de “dispositivo” — como descrito em documentos sobre os focos guerrilheiros de Francisco Julião — batem cabeça, com a incipiência e desorganização do grupo de sobreviventes.
Um quadro que em nada lembra heroísmo revolucionário. Como descreve o autor, “a vida no acampamento, ou no dispositivo, como costumavam dizer, seguia na pachorra insuportável, para a natureza agitada e perscrutadora de Backer. A região não é nada adequada à guerrilha. Um beco sem saída, isolado do mundo. Em léguas e léguas, os moradores, tão escassos, podem ser contados nos dedos de uma mão. As armas, verdadeiras sucatas: velhos revólveres, carabinas Papo Amarelo, caindo aos pedaços, dois mosquetões do fim do século dezenove, e algumas armas leves.
À noite, sob os lampiões a querosene, há sempre leituras de experiências de guerra e de guerrilhas, dos camaradas Mao Tsé-tung e Che Guevara. (…) O isolamento em que estão por vários meses, é interrompido pouquíssimas vezes.
Uma dessas, pela visita do coordenador das Ligas Camponesas. Mas essa estranha figura não trouxe nada consigo, nada que pudesse dissipar a certeza do equívoco e as dúvidas que martelavam a cabeça de todos. Ao contrário, a presença dele só fizera surgir novos questionamentos: “as guerrilhas só prosperam confrontando governos corruptos, opressores, repressores e sanguinários”. Com certeza, não é o caso de João Goulart — que, na surdina, apoiava os movimentos e lhes dava respaldo moral, como depois todos ficaram sabendo.
Mais adiante, já se encaminhando para finalizar a ação do romance, o autor, no capítulo LXIX, enfatiza: “Para não estender em demasia esta narrativa, eu, narrador desta história singular e factível, vou sintetizar ao máximo o desenrolar dos fatos; fatos estes que se repetirão em Jataí, Rio Verde, Santo Antônio da Barra, Indiara, Guapó e Abadia de Goiás. Em cada uma dessas localidades, Backer encontra um grau diferenciado de dificuldade no convencimento dos refratários e renitentes. Entretanto, no final, sempre se estabelece a concordância à ideia de mudarem todos para Goiânia. Por onde eles passam, as igrejas, os templos religiosos transformam-se em mausoléus de múmias expostas em cemitérios de mortos e insepultos. Afinal uma utilidade àquilo que sempre foi inútil e extremamente nocivo”.
No capítulo seguinte o autor descreve um cenário de destruição, nas ruas de Goiânia, nos dias posteriores ao grande desastre da contaminação global, pelo vírus da Hipertemia.
Claro, nada que se possa comparar ao que vemos hoje, nas ruas da cidade – nada a ver com destruição, apenas um certo clima deprê, um medo generalizado, uma paranoia que se alastra, agigantando-se com a histeria das mídias, e de certas ações de governantes: “Ao percorrer as ruas de Goiânia, ao ver a desolação da cidade deserta, Backer não se contém, e chora. A visão das ruas mortas tremeluz através de suas lágrimas. A visão das ruas mortas tremeluz através das suas lágrimas. E as lembranças mais ternas invadem o seu ser sensível, destemido e, ao mesmo tempo, afogueado e abatido pela tragédia humana. As lembranças lhe vêm à mente numa sequência alucinante e desconexa”.
Encerro esta breve resenha sobre o livro que tive o prazer de prefaciar, enfatizando sua atualidade temática — alcançada talvez por uma intuição profética, por seu autor, transcrevendo uma frase do advogado, leitor culto e leitor compulsivo (como ele mesmo se define), José Rubens Araújo Jr.: “Hipertemia é leitura obrigatória e urgente”.
P.S. Não obstante a chamada por leitura urgente, ou urgentíssima, feita pelo advogado leitor compulsivo (coisa raríssima de se ver, em tempos de crescimento do analfabetismo funcional), tudo indica que poucos leram com atenção, o que parece ter sido (e hoje estamos mergulhados na pandemia do medo) um pesadelo possível de acontecer na realidade da vida humana, como ficcionalmente nos alertou o escritor Hugo Brockes.
Brasigóis Felício, jornalista e escritor, é membro da Academia Goiana de Letras.
Por Brasigóis Felício- Especial para o Jornal Opção
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